Conta a história, que o Patinho Feio depois de um doloroso caminho, se descobre um lindo cisne e isso repara todo o sentimento de rejeição e abandono vivido até então. O conto escrito por Hans Christian Andersen termina aí, deixando uma das seguintes mensagens: “saber sua identidade e se reconhecer em seus semelhantes muda toda a história”.
De 1843 para cá, ano de publicação do conto, a mensagem permanece potente e continua a atrair, como um imã, a atenção de muitas crianças. Do mesmo modo, se preserva, ainda hoje, na memória de adultos de diferentes contextos sociais e culturais.
Sem dúvida, podemos nos perguntar se em algum momento de nossas vidas também nos sentimos um patinho feio. E a história da humanidade, com toda certeza, cria e recria muitos mecanismos de exclusão, que reafirmam essa imagem tão sombria.
Me recordo nitidamente da primeira vez que ouvi o conto, eu devia ter uns cinco anos de idade e, mesmo sendo tão pequena, lembro com assombrosa nitidez que chorei um choro de uma profunda tristeza, tal foi o impacto do Patinho Feio. De lá para cá, por vezes até o início da juventude, me senti vestida das plumas desse pato que se sentia tão inadequado. Saber que o pato era um lindo cisne, nem sempre me acalentou, mas com certeza, me encheu de esperança.
Agora, vamos analisar, de forma breve e acessível, alguns aspectos da estrutura deste conto. Neste ponto, é importante destacar que estamos abordando o conto original. Outro aspecto importante é que este texto é uma analisa simbólica sobre o conto, a partir da perspectiva da Psicologia Analítica.
Ilustração do livro O Cisne e o Espelho
Inicialmente, analiso que toda a primeira parte da estrutura do conto apresenta a manifestação do sentimento de rejeição e, a potencialização desse sentimento, por meio das figuras materna e paterna. A mãe do patinho, choca o ovo, mas não sustenta para si e para os demais que ele seja diferente, de modo que ele está sempre se sentindo como um ser estranho, inadequado. Já o pai, é mencionado como ausente, a mãe do Patinho, logo de início se queixa sobre o abandono paterno. A partir daí, se configura um “Patinho feio” que interpreta o mundo a partir do sentimento de inadequação e rejeição.
Em seguida, podemos observar que o Patinho percebe todos os animais do quintal e também seus irmãos de forma agressiva e discriminatória. A pata mais nobre do quintal reforça o complexo materno do herói da história, na medida em que ela coloca uma condição de adequação para que ele fosse aceito naquele grupo. A pata mais nobre, assim como outros personagens que seguirão, manifestam e reforçam o sentimento de rejeição que o patinho trazia com ele.
O primeiro cenário após o nascimento dos ovos é a inserção no lago. O lago remete ao paraíso da relação primal, ou seja, a relação mãe e filho. Segundo Neumann (1995) o caráter de Eros da relação primal, como se refere a um processo anterior à formação do ego, manifesta-se cósmica e transpessoalmente, e não de forma pessoal. “É por isso que o Paraíso, o Lar Original, o Círculo, o Oceano ou o Lago, figuram entre os símbolos do passado remoto. Estar contido nesse mundo cósmico é uma expressão da forma embrionária de existência anterior ao ego” (NEUMANN,1995; p. 15).
Além dos arquétipos maternos e paternos, surge nesse primeiro momento a figura dos irmãos. O patinho não percebe os irmãos como companheiros, amigo ou herói. Não estabelece com eles um sentimento de irmandade, pelo contrário, sente-os maus e rivais. Desse modo, o patinho além de não estruturar sua identidade também carrega consigo dificuldades na alteridade, no relacionamento com os outros ou em estabelecer relações de companheirismo.
Erich Neumann (1995) fala sobre o comportamento narcísico da criança ferida. Segundo o autor, para que a criança consiga estabelecer relações de afeto saudáveis com outras pessoas ela precisa ter recebido o bastante. Neumann explica que para crescer, para amadurecer, para se desenvolver psiquicamente, para se separar da fusão com a mãe, é preciso ainda ter recebido o bastante, sido alimentado, tocado, acariciado, amamentado e, sobretudo, ter sido amado o suficiente. Com efeito, o ser humano não aceita abandonar, aceitar a perda para seguir adiante, a menos que tenha passado pela experiência dessa etapa; do contrário, o psiquismo procura voltar a esse impossível paraíso perdido, tende a regredir para situações de falta ou situações traumáticas.
Dando sequência a narrativa do conto, analiso que: não sendo mais suportável para o patinho todo aquele sofrimento, ele foge do quintal com os poucos recursos internos que dispunha. O pular a cerca se inicia com um ato de fuga. A fuga é uma atitude instintiva muito presente no processo de individuação do patinho. Em vários outros momentos da história, ele foge. Podemos considerar esse movimento como parte de um instinto de sobrevivência, e, portanto, ainda que limitado, de preservação da vida.
Segundo Fraisse (2006) a etapa dos primeiros anos do desenvolvimento psíquico da criança é caracterizada pela diferenciação entre o eu e o outro, ou seja, seria a percepção de que minha necessidade foi atendida e saciada e “o eu não é o outro que me alimenta”. Como o patinho sofre com uma desestruturação em toda essa fase inicial da vida, não é claro para ele essa diferença.
Diante de tanto caos psíquico, o patinho vive uma constante fuga e, busca, inconscientemente, superar esse estado de fusionamento e conhecer sua verdadeira forma. Nessa jornada, até chegar ao conhecimento da sua identidade, ele vai percebendo aquilo que ele não é. Dito de outro modo: ele vive em fuga e em busca de si mesmo.
Como esse texto precisa ser mais objetivo, vamos literalmente pular para o final do conto. O Patinho, finalmente encontra e se reconhece um cisne, ou melhor um lindo cisne. Podemos analisar, que, simbolicamente, ele reconhece sua identidade no espelho d’água e, renasce. É nas águas que o outrora patinho, agora cisne se reconhece. Neste ponto o herói finalmente ganha forma e se percebe como igual aos demais da sua espécie. Temos aqui dois símbolos importantes, o espelho e a água.
Narcíso é o personagem da mitologia grega que se apaixona pela própria imagem. O patinho repete o movimento de Narciso, e se olha no espelho da água, mas ao contrário daquele, não afunda em si mesmo. Ele precisava dá a si mesmo o olhar narcísico materno e faz isso sem se perder na própria imagem, ao contrário do personagem mítico Narcíso. O patinho aprende a se auto nutrir, ou seja, a dar para si o olhar atento e cuidadoso. É esse olhar da função materna (estou me referindo a função e não necessariamente a mãe biológica) que dá tônus para a sensação de encarnação da própria existência.
Um sentimento tão potencialmente danoso como o da rejeição, uma vez vivido, pode retornar de formas fantasmagóricas ao longo da vida. Portanto, essa história, alerta sobre a importância de observar esses fantasmas, muitas vezes originados em épocas tão remotas de nossas vidas.
Por esta razão, deixo uma provação sobre a importância do auto amor. Pois, não importa quantas vezes o reflexo sombrio do patinho feio apareça diante de nós, como uma sub identidade, em todas essas vezes, precisaremos sempre nos olhar com reconhecimento e apreço e, nos lembrar, da importância dos vínculos saudáveis de identificação.
“Lutar contra as feridas da alma, pode acarretar no aumento da dor. O convite que deixo neste artigo, é dialogar com coragem, presença e respeito. Quem sabe, assim, possamos reabilitar de um modo mais genuíno, nossa auto imagem”.
Nesse caminho, a arteterapia e a psicoterapia podem ser o espaço de construção desse diálogo interno, tão especial e importante.